A evolução da discussão sobre o rol de eventos e procedimentos da ANS no âmbito judiciário e legislativo e os impactos do atual entendimento consolidado pela Lei 14.454/22
Sabe-se que as Operadoras de Saúde, desde o advento da Lei 9.656/98, sempre autorizaram ou negaram a cobertura de procedimentos médicos observando estritamente o disposto na referida lei e nas normativas regulamentadoras, notadamente o rol de eventos e procedimentos da ANS.
Por conta do descontentamento de alguns beneficiários de planos de saúde que não aceitam as limitações constantes no rol da ANS, o Poder Judiciário, por muitos anos, foi (e continua sendo) demandado pelos mais diversos beneficiários de plano de saúde que tiveram coberturas de procedimentos não previstos no rol de eventos e procedimentos da ANS negadas pelas Operadoras de Plano de Saúde no âmbito administrativo.
Após diversos processos julgados e uma longa batalha travada pelas Operadoras de Plano de Saúde para fazer com que o Poder Judiciário compreenda os riscos ao autorizar procedimentos não previstos no rol da ANS, em dezembro/2019, o ministro relator do Superior Tribunal de Justiça Luís Felipe Salomão, ao julgar o REsp 1.733.013, reafirmou a licitude e a taxatividade do rol de eventos e procedimentos da ANS, reconhecendo a necessidade de manter o equilíbrio contratual e principalmente reconhecendo que por estarmos diante de uma contratação particular, que possui limites muito bem definidos e regulamentados por legislação federal, não cabe ao Poder Judiciário ampliar os limites contratados pelas partes e regulamentados por lei.
Após esta decisão, a batalha travada durante longos anos sobre a taxatividade do rol da ANS ainda não teve fim, pelo contrário, foi ainda mais acentuada, na medida em que, embora alguns Juízes Singulares e Tribunais tenham compreendido a importância e a necessidade de observar as limitações contratuais e legais existentes, alguns preferiram ignorar os riscos e seguir proferindo decisões deferindo coberturas que extrapolavam os limites contratuais e legais existentes.
Inclusive, a divergência de interpretação sobre o assunto não se limitou somente as instâncias ordinárias, visto que as próprias Turmas do Superior Tribunal de Justiça divergiam sobre o assunto, tendo a Quarta Turma daquela Corte firmado seu entendimento pela taxatividade, em regra, do rol de eventos e procedimentos da ANS, enquanto que a Terceira Turma daquela Corte apresentou entendimento diverso, no sentido de que o rol de eventos e procedimentos da ANS é exemplificativo e apresenta tão e unicamente uma referência de coberturas mínimas.
Então, depois de mais um longo período de incertezas e decisões conflitantes nas mais diversas instâncias e nos mais diversos Tribunais do país, em 08/06/2022, quando do julgamento do EREsp 1.886.929 e do EREsp 1.889.704, o Superior Tribunal de Justiça deu fim a longa discussão quanto a taxatividade do rol de eventos e procedimentos da ANS, consolidando o entendimento no sentido de que em regra o rol de eventos e procedimentos da ANS é taxativo.
Estas decisões eram esperadas, sobretudo pelo fato de que as decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça caminhavam para tanto e também porque não se poderia admitir que outro fosse o entendimento, deixando-se uma porta escancarada para a ampliação da saúde suplementar que levaria a ruína inúmeros planos de saúde no território nacional.
Por meio destas decisões, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento pela taxatividade do rol de eventos e procedimentos da ANS, bem como apresentou as seguintes balizas normativas: 1. O rol de eventos e procedimentos é em regra taxativo; 2. A Operadora de Saúde não possui obrigação de cobertura de procedimentos não constantes no rol de eventos e procedimentos da ANS quando existente outro procedimento eficaz, efetivo e seguro incorporado no rol da ANS; 3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimentos que não constem no rol de eventos e procedimentos da ANS; e, 4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura dos procedimentos indicados pelo médico assistente desde que estes procedimentos não tenham sido indeferido expressamente pela ANS a sua incorporação no rol da ANS; haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e, seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
Após a consolidação deste entendimento, houve um clamor público no sentido de que as limitações impostas – que na verdade sempre existiram, mas que por muitos anos foram, em muitos casos, desconsideradas – poderiam acarretar prejuízos sem precedentes aos mais diversos beneficiários de planos de saúde.
Diante de todo o clamor público gerado em razão deste novo entendimento e o crescente receio na sua aplicação, em 29/08/2022, foi aprovado pelo Senado Federal o Projeto de Lei 2.033/2022, que altera a Lei 9.656/98 e dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para o fim de estabelecer hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.
Encaminhado o projeto de lei para sanção ou veto do Presidente da República, este sancionou a Lei 14.454/22, originada do Projeto de Lei 2.033/2022, em todos os seus termos, tendo sua publicação ocorrido no Diário Oficial da União em 22/09/2022, com vigência inicial a partir desta data.
De acordo com a Lei 14.454/22, o procedimento que não estiver previsto no rol da ANS deverá ser coberto pelos planos de saúde, desde que preenchidos um dos seguintes requisitos: 1. exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; OU, 2. existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.”.
Ou seja, embora em nenhum dos artigos da Lei 14.454/22 tenha qualquer disposição quanto a ausência de taxatividade do rol de eventos e procedimentos da ANS, a referida lei abriu uma “porta” escancarada, repleta de inseguranças e incertezas para as Operadores de Saúde de todo o país, “porta” esta que desequilibra a contratação firmada entre as partes, que impede que as Operadoras de Saúde possam aferir os custos envolvidos nas contratações, que dificulta a precificação do produto comercializado – aqui compreendido o plano de saúde contratado em si – e, por conseguinte, coloca em risco a própria subsistência da saúde suplementar.
Embora exista uma crença popular no sentido de que as Operadoras de Saúde podem suportar esses custos, notadamente os custos de todos os procedimentos e tratamentos existentes e que sejam eventualmente adotados pelos médicos assistentes dos pacientes, essa crença não é verdadeira, primeiro pelo fato de que a ciência médica evolui diariamente, a uma velocidade sem precedentes, havendo procedimentos e protocolos de novos tratamentos surgindo constantemente e com valores cada vez mais altos; segundo pelo fato de que, se a Operadora de Saúde for compelida a autorizar todo e qualquer procedimento e protocolo de tratamento prescrito ao beneficiário, sem qualquer margem/limites do que é efetivamente coberto, o resultado é simples e matemático, a Operadora de Saúde quebra.
Saúde suplementar – assim como a saúde pública – é sempre um tema sensível pois, por envolver a temática saúde, envolve diretamente pessoas.
Quando se autoriza um procedimento e este alcança o resultado almejado, estamos falando da vida de uma pessoa que foi salva. Quando se nega um procedimento que poderia, por vezes, ter algum resultado prático e este procedimento, por falta de recursos do beneficiário ou por quaisquer outros motivos, não é realizado, estamos falando da vida de uma pessoa que poderia ser salva e não foi.
Logo, é absolutamente normal e compreensível que pautas envolvendo a saúde – seja a saúde suplementar, seja a saúde pública – tomem proporções sem tamanho, sejam acompanhadas de clamor público e os mais diversos protestos.
Todavia, é de suma importância a compreensão por parte dos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – que, quando uma Operadora de Saúde nega um procedimento, ela não o nega porque quer, porque está colocando o lucro na frente do beneficiário ou porque não é sensível a situação vivenciada pelo beneficiário, mas sim porque estamos falando de uma contratação que envolve riscos e precisa ter um equilíbrio financeiro, pois do contrário, ela quebra, prejudicando assim todos os beneficiários do plano de saúde.
A saúde suplementar para se manter depende de recursos privados, notadamente do valor pago pelos contratantes quando realizam/mantém a contratação de um plano de saúde junto à uma Operadora de Saúde. Logo, se a Operadora de Saúde precisar arcar com custos superiores àqueles pagos pelo seu serviço, ela quebra. Se a Operadora não puder precificar adequadamente o seu produto, por não saber os custos que está sujeita a arcar e estes virem a superar o contratado, ela quebra.
E embora exista uma crença popular de que a ausência de taxatividade do rol da ANS é benéfica aos beneficiários de plano de saúde, a verdade é que essa ausência de taxatividade pode representar um custo muito mais alto do produto comercializado, que inviabilizará milhares de contratações e que certamente sobrecarregaria o sistema público de saúde; ou, pode representar o rico da própria Saúde Suplementar que, não podendo prever os riscos, poderá sofrer prejuízos financeiros irreparáveis.
Ainda que sejam questões sensíveis e, por vezes, ignoradas em meio a argumentos de que se estaria prezando pela vida das pessoas “acima do sistema”, estas questões precisam ser refletidas, pois, ao final, aquilo que foi pauta de clamor público pode trazer consequências desastrosas para o sistema da Saúde Suplementar, pode impactar diretamente na própria Saúde Pública que não terá condições de absorver todas as demandas e, consequentemente, acarretar prejuízos a milhares de pessoas em todo o país.
E, ainda que pouco se fale sobre a importância do rol de eventos e procedimentos da ANS para o beneficiário de plano de saúde, a verdade é que a observância do rol da ANS traz ao beneficiário segurança e certeza de que o procedimento que lhe foi prescrito possui eficácia comprovada e se destina efetivamente a investigação, tratamento e/ou cura do seu diagnóstico clínico.
Isso porque, todos os procedimentos constantes no rol de eventos e procedimentos da ANS são precedidos de estudos clínicos e possuem evidência científica de eficácia.
Logo, observar o rol de eventos e procedimentos da ANS possibilita ao beneficiário que este tenha total segurança de todos os tratamentos/procedimentos que precisar se submeter, pois eficazes, adequados e seguros.
De igual forma, a observância do rol da ANS possibilita às Operadoras de Saúde que estas tenham certeza de que estão custeando procedimentos adequados a situação clínica do beneficiário, além da questão da precificação dos produtos comercializados por estas, da manutenção do equilíbrio contratual e da segurança jurídica da manutenção da própria Saúde Suplementar em si.
Por Vanessa Pereira